terça-feira, 3 de novembro de 2009

Aqueles que vêem sem ver

Todo mito tem um fundo de verdade - não me lembro quem disse isso pela primeira vez, nem quando. A crença em todos os deuses pagãos antigos provavelmente eram reflexo do maravilhamento de um Homem que buscava a origem de fenômenos naturais. Provavelmente, algum grego antigo ficou mesmerizado e intrigado com o fenômeno do raio elétrico, antes de concluir que havia um sujeito grandalhão de barbas e cabelos encaracolados chamado Zeus, que ficava disparando aquelas fagulhas branco-azuladas que poderiam destroçar um ser humano. Outro viu aquela bola de fogo incandescente no céu, e percebeu que só podia ser um carro que transportava um ser fantástico chamado Apolo. Os celtas acreditavam que todos esses deuses eram manifestações de forças da Natureza: "todos os deuses são Um só", afirmavam eles.

Mas o que isso tem a ver com a cegueira e o tema de Visão de Um Sonho?, você pode se perguntar. É que nesse panteão antigo, encontramos situações que são metáforas para coisas até mesmo da nossa vida cotidiana. No nosso caso, vejamos o mito do titã Argos: filho da ninfa Io e de Arestor, Argos nasceu com nada menos do que cem olhos, espalhados por todo o corpo. Por isso era chamado de "Panoptes", que em grego significa "Aquele que tudo vê". O titã enxergava por todas a partes do seu corpo. Isso nos remete ao fenômeno científico no qual as pessoas privadas de visão apresentam um desenvolvimento espantoso dos outros sentidos: paladar, olfato e, proeminentemente, da audição e do tato, como uma forma de compensação pelo sentido que lhe falta. Como Argos, o deficiente visual "enxerga" com as outras partes do corpo. Não raro, os portador de deficiência visual apresenta um capacidade de percepção que transcende a das pessoas com todos os cinco sentidos funcionais.



Joseph Campbell nos afirma em O Herói de Mil Faces que todos os mitos, de certa forma, se repetem, com algumas variações. O mito de Argos nos remete à uma das áreas mais férteis da mitologia moderna, na visão de Campbell: as histórias em quadrinhos. Mais precisamente, o Demolidor: na sua vida civil, Matt Murdock, um advogado que perdeu a visão em um acidente na adolescência. Mas os outros sentidos de Murdock desenvolvem-se de forma quase sobrenatural - seu tato pode lhe "mostrar" a cor de qualquer objeto pelo calor que irradia; seu olfato delicado permite a ele inclusive uma capacidade de localização espacial, apenas pelo cheiro dos objetos; e sua audição pode lhe indicar se um homem mente apenas pelo ritmo dos batimentos cardíacos, além de também poder gerar uma espécie de "mapa em 3D" através do velocidade de reflexão dos sons (como o "sonar" dos morcegos). E o herói faz uso dessa percepção avançada da realidade lutando contra o crime sob a identidade do Demolidor, que "voa" em acrobacias extraordinárias ("Ainda bem que sou cego", diz o personagem em certa história. "Se eu pudesse enxergar, dificilmente teria coragem de fazer o que estou fazendo agora.") O Demolidor tem o mérito de ser o primeiro super-herói dos quadrinhos com uma deficiência física - e o primeiro a tratar o deficiente visual como alguém que pode fazer a diferença na sociedade sem se deixar abater por sua limitação.



Claro, tudo isso são mitos e versões... como diremos, "engrandecidas" da realidade. Mas sua moral, seu sentido, é muito claro: uma pessoa cega pode não perceber o mundo como percebemos. Mas isso não a impede de, à sua maneira, ter a percepção tão ampla e rica do mundo em que vivemos quanto nós - um fato que estamos começando a perceber agora.

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